CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DA GESTÃO URBANA E DOS EIA/RIMA: O caso do empreendimento Cais Mauá do Brasil S.A.

15/09/2015 19:32

Endogenamente, ou seja, em termos de estrutura interna, não há muito que apontar no EIA/RIMA para o a “revitalização” do Cais Mauá. É um documento bem construído, no sentido técnico. Contêm os tópicos esperados, os levantamentos foram feitos, os registros anexados. Com certeza, não se trata de um estudo impecável, mas, em geral, é satisfatório no mundo das “consultorias ambientais”.

Por isso, as principais críticas que podem ser dirigidas a esta audiência pública que acontecerá dia 18 de setembro de 2015 são de ordem exógena, dizendo respeito ao que se espera de uma cidade, e a lógica imbuída no próprio fazer dos EIA/RIMA.

Uma participação realmente pública e popular não pode partir do que já está pronto e do que se espera de pré-suposto, que é tão dado, tão idêntico em todos os casos, que poderíamos estar falando do empreendimento Novo Recife, mas estamos falando do Cais Mauá. A padronização empobrecedora de significados, que resseca a paisagem da cidade, vendo-se sempre mais do mesmo.

A administração do espaço urbano enquanto uma empresa é assaz violenta aos direitos intrínsecos dos cidadãos, e uma restrição clara à sua participação. Não se pode, por ex., demitir os habitantes como se demite funcionários. E também não se pode pensar a realização cotidiana em dependência de sistemas lucrativos, onde o valor de troca dos espaços sobrepõe o seu valor de uso. Isso só leva a um caminho, o da mercantilização total da vida e, portanto, a processos de gentrificação.

Para os que não estão familiarizados, o conceito de gentrificação é obra do geógrafo Neil Smith, e define-se por uma segregação sócio-espacial resultante do caráter econômico da reestruturação urbana. Processos de agregação de valor, com usuários de determinadas rendas, via de regra média a alta, que moldam quem usa o que, e, especialmente, onde. O processo de gentrificação é perverso porque tende a ser silencioso, afasta sem que haja remoções diretas. O caso recente dos “rolezinhos”, ocorridos especialmente na região sudeste, é emblemático para entendermos os códigos que são disputados no uso coletivo da cidade.

Aqui podemos voltar ao início, e elaborar uma crítica para o estudo em questão. A influência do empreendimento comercial, previsto para a área adjacente ao Gasômetro e a Praça Brigadeiro Sampaio, é totalmente desmedida se pensarmos através do conceito supracitado. A construção de um shopping center é discrepante com a área do Centro Histórico por diversas questões. A primeira delas é em relação ao próprio adjetivo do bairro, acrescido por legislação recente. Não faz absolutamente nenhum sentido construir tal espaço de consumo em um local que se preza a ser “memória viva” da cidade. Em uma área em que as edificações coloniais já são resquício, construir uma estrutura “modernista” só vem descaracterizar ainda mais o bairro. Aliam-se a isso as três torres previstas, que também em sua arquitetura são incondizentes com a história que se pretende manter. Além de que o Centro conta com diversos prédios abandonados, subutilizados, etc. Em uma área já altamente adensada, é desnecessário “invadir” o Guaíba com mais edifícios.

O próprio estudo mostra que a Avenida Mauá, paralela e limítrofe à principal extensão do Cais, comporta diversos prédios de grande altura, e mesmo assim inferiores aos que se pretende construir, permanecendo vários deles com uso obsoleto. Sabe-se que não é responsabilidade desse consórcio reformá-los, muito menos importar-se com a reforma urbana, porém, permanece a questão de que estamos falando da Área de Influência Direta. Sendo a moradia uma das grandes questões sociais que enfrentamos no Brasil atual, é emblemático ver a transformação do prédio da Superintendência de Hidrovias e Portos em um hotel, considerando-se tantas moradias potenciais no entorno, as quais não possuem nenhuma destinação prevista. Pode-se perguntar, enfim, se os prédios já existentes na Mauá não se prestam à restauração e reutilização, sem a necessidade de um Business Park à sua frente.

Outro apontamento é o fato de que shoppings são arquitetonicamente voltados para dentro. A sua razão de ser é o que eles próprios contêm: das vitrines às praças de fast food, a experiência desses locais independe do ambiente que lhe abriga, e isso que estamos falando, aqui, do grande corpo d’água que banha Porto Alegre, e que é “sede” de seu saudado pôr do sol. O centro de Porto Alegre caracteriza-se por ser uma área de convívio ao ar livre, particularmente em sua orla. Inclusive, o comércio, como caracterizado no EIA/RIMA, tem essas características primordiais. Assim, não há nada que nesta construção prevista tenha a contribuir com a rotina local, pelo contrário. Construí-lo é virar, definitivamente, as costas para o Guaíba.

Tomemos uma citação direta, da página 15 do presente estudo: “Para atender a públicos variados prevê-se atividades diversificadas no Centro Comercial, com a presença de lojas âncora, restaurantes, cinemas, vagas de estacionamento, áreas de serviço e administração”. Todas as atividades listadas já se encontram em operação no bairro histórico, em diversas modalidades: galerias, ruas, museus. Ademais, a questão dos públicos variados é completamente discutível, uma vez que o aporte financeiro para investir e manter uma loja num local valorizado não pode dar conta das mais variadas rendas. E tal não caminha sozinho, porque a partir daí espera-se um determinado público, de determinados comportamentos.

Enfim, podemos ressaltar que o EIA/RIMA é negligente à característica do Centro enquanto local de pequenos comércios, dos famosos mercadinhos de bairro, dos micro-empreendedores, dos artesãos a céu aberto. A Rua Voluntários da Pátria é uma boa demonstração do comércio que move a rotina peculiar do bairro. No conjunto geral, a valorização imobiliária que acarretará a reestruturação proposta para o Cais Mauá - comentada, inclusive, diretamente no tópico sobre possível êxodo populacional - é um exemplo evidente do empreendedorismo que rege a gestão e o planejamento das cidades, transformando os espaços em mercadoria e segregando sob as vestes de um benéfico desenvolvimento. Se ainda não ficou claro, é só pensar se os construtores civis que farão a “revitalização” do Cais frequentarão esses espaços posteriormente.

De fato, estritamente não deve ser ocasionado um êxodo populacional, ou seja, não há uma tendência de diminuição da população total do bairro, a partir da inauguração das instalações pretendidas. Entretanto, a valorização do solo propiciará uma “troca” de moradores, que hoje estão habituados a um custo de habitação, e dos comerciantes locais, que trabalham com preços mais populares.

Para finalizar, em termos da paisagem, as torres e o cento comercial destoam de toda a orla. É possível, inclusive, afirmar que o empreendimento se apropria de um bem imaterial e não quantificável: a localização costeira, com um sistema atmosférico particular, de brisas constantes e amplos horizontes. Para utilizar os termos do geógrafo Eric Dardel, o espaço construído precisa integrar-se aos espaços aéreo e aquático e telúrico, refletindo uma paisagem que seja condizente com os seres humanos em sua reprodução atarefada, como verdadeira base material de sua existência.

O Cais Mauá e a Usina do Gasômetro são, para os porto-alegrenses, um lugares na sua acepção mais estrita, reconhecidos no imaginário coletivo, valorizados não por seus preços, mas por serem importantes marcos regionais, que atraem os passantes e catalisam uma vontade de vivência. O antropólogo Marc Augé discorre exatamente sobre o oposto, os não lugares, locais em que não se permanece e não se sente pertencente, destinados à passagem e às tarefas pontuais. Lugares, portanto, que não tem características próprias, ao contrário, são facilmente reproduzíveis em qualquer outra área. O empreendimento pretendido pela especulação financeira é, ao fim e ao cabo, um atentado à cidade, querendo transformar uma de suas maiores potencialidades em um não lugar. Sem gosto, sem cheiro, sem graça. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

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