A efervescência política porto-alegrense e os “mascarados anarquistas” (por Rafael Zilio, membro da AGB-PA)
03/07/2013 08:32
Por Rafael Zilio
Recentemente, um comentarista de um programa televisivo de grande audiência no estado mostrou sua indignação com os protestos contra o aumento do preço da tarifa de ônibus em Porto Alegre, afirmando ser o grande problema das manifestações o que ele denominou de “mascarados anarquistas” que, no seu entendimento, provocariam vandalismo e baderna, minando o que as manifestações teriam de positivo. Esse destaque, realizado de maneira descontextualizada e pouco refletida – como a esmagadora maioria das abordagens midiáticas sobre mobilizações populares –, remete ao importante papel do(s) setor(es) libertário(s) nas contestações que pululam nos espaços públicos da cidade. Tal papel não é exclusividade de Porto Alegre, tampouco do Brasil, merecendo uma brevíssima contextualização.
O pensamento libertário, apesar de possuir diversas correntes desde sua sistematização com o anarquismo clássico no século XIX e início do século XX, caracteriza-se pela objeção simultânea ao capitalismo, suas instituições e seu imaginário, e ao “socialismo” burocrático e autoritário. Contemporaneamente, as formas de organização e atuação horizontalizadas e autogestionárias, sem a separação entre dirigentes e dirigidos, são encontradas em diversos movimentos sociais que emergiram nas últimas décadas no mundo, em parte pelo esgotamento do modelo soviético e pela crise das correntes apoiadas no marxismo. Contudo, mesmo em veículos de comunicação não-conservadores, há grande carência dessa distinção.
Contrariando essa lógica, no dia 23 de abril do corrente ano, o Sul21 teve a ousadia de publicar uma matéria abordando ativistas anarquistas a respeito do papel destes nos protestos. Esta é uma prática que merece destaque por ir além da concepção política restrita a dualidades e a disputas partidárias. A oferta de espaços em veículos de comunicação que não sejam de circulação deveras estrita é rara, uma vez que o despreparo e o pré-conceito de inúmeros jornalistas denotam superficialidade e esvaziamento de conteúdo. Sintoma disso é a associação que ainda se faz, mesmo em pleno século XXI (dois séculos após a sistematização do pensamento libertário), entre anarquia ebagunça/caos/vandalismo.
No caso da capital do estado, a rejeição a formas verticalizadas de organização política, como partidos (que visam, em última instância, ascender ao poder de Estado), não se faz presente somente naqueles autodenominados anarquistas, mas também em todos que contestam a fórmula assimétrica que separa dirigentes e dirigidos e se desiludem com a atuação de partidos ditos “de esquerda”. Em Porto Alegre, a diminuição do espaço público (enquanto espaço político) na esteira das Parcerias Público-Privadas encontra a resistência da sociedade civil que, de maneira significativa, está fazendo uso de formas não-hierárquicas de organização, inserindo-se na tradição libertária. E os pejorativamente chamados de “mascarados anarquistas” contribuem expressivamente para a efervescência política porto-alegrense, propondo uma forma de atuação que não visa a disputa partidária, a formação de quadros e lideranças cristalizadas e o aparelhamento do Estado (no caso, da prefeitura).
Nesse sentido, não é por acaso que vimos há pouco as maiores manifestações políticas dos últimos tempos na cidade. A resistência aos impactos de megaeventos, à insistência no alargamento de vias e à transmutação de espaços públicos em estacionamentos que privilegiam o transporte individual, apresenta as supracitadas características. A ação direta na luta por um transporte efetivamente público (e não estatal-privado, como é atualmente) mostra a urgência de se repensar as formas de organização política para além da dualidade direita-esquerda partidária, intentando retirar as aspas desse espaço “público”. Desse modo, também urge que veículos de comunicação que se pretendem não-conservadores não caiam nas armadilhas de uma abordagem politicamente superficial e que homogeneíza formas de organização e contestação tão distintas.
Rafael Zilio é mestre em Geografia pela UFRJ e membro da Associação dos Geógrafos Brasileiros – seção Porto Alegre
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